Terceira noite
Terceira noite
Como isso nunca aconteceu, eu escrevo.
Cada um saiu do seu quarto na hora marcada, pegamos o mesmo táxi, subimos juntos a rampa da rodoviária. No entanto, por alguma razão desconhecida, o ônibus saiu minutos antes do previsto. De repente vi-a me olhar como se eu tivesse culpa, como se voltar para casa naquele exato instante fosse uma questão de vida ou morte. Em contrapartida ao seu ataque de fúria, simplesmente me ausentei de responsabilidade. Maria Eugênia, insatisfeita com a minha serenidade, fez que ia me xingar, mas se calou. Solucionar aquele problema era mais importante do que dar vazão a sua ânsia, então saiu em busca do guichê da empresa onde havíamos comprado as passagens, estabanada, eufórica.
Só tem ônibus amanhã de manhã, disse a moça, alheia ao nosso ódio em ter que permanecer ali.
Faltar ao trabalho está fora dos nossos planos.
Lamento, sairá às sete.
E agora? Tinha uma raiva canina nos lábios.
Ela arrastou a mala atrás de si, embrenhou-se no meio daquele monte de carros e deu com a mão. Corri para alcançá-la, não era do seu feitio esperar, logo eu que ficava feito bobo à espera de decisões furtivas. Peguei o celular, precisava justificar a uma pessoa querida que o meu retorno iria demorar, enquanto ela me olhava de esguelha. Sua respiração foi ficando mais branda e até deixou o pescoço cair no banco, devia estar no cansaço de tudo. Apesar de estar num estado de leoa arfante, ela ainda era uma mulher por quem me interessava. Ainda era a mulher que eu gostaria de chamar de minha.
Lembrei-me de quando a conheci, uma aluna indomável, dessas que evitam assumir os próprios erros. Repetia-os só de sacanagem, motivo pela qual fazia toda a turma odiá-la, falar ao seu respeito com propriedade, excluí-la de atividades. Por conta disso, meio que reparei nela só bem depois do imediatismo da sua presença. Não era a mais bonita, mas no dia em que tirou os óculos para que eu pudesse limpá-los uma descarga elétrica passou pelo meu corpo; limpei, dei meia volta, cocei-me inteiro, voltei. Ela os colocou, sem entender. Talvez soubesse, estamos falando de Maria Eugênia.
Agora estava ali, semiadormecida. Há alguns meses deixei de ser o seu instrutor e nos tornamos colegas de ofício. Confesso que ao receber a notícia reconheci naquilo uma oportunidade de me aproximar. Houve um churrasco em que bebeu demais, então me ofereci para levá-la em casa. No caminho conversamos sobre uma porção de semelhanças entre nós das quais nem podíamos imaginar. Por exemplo, Raul. A música dele tocava cotidianamente em nossas cabeças – mais na dela, que fazia da maça a sua filosofia de relacionamento. Era uma nova Maria Eugênia, não a implicante e insuportável da qual haviam falado. Era uma nova e ao mesmo tempo a de sempre. Bem pertinho de mim, ela podia sentir o meu suor, se quisesse. Bem perto, muitíssimo perto, ela podia escutar a respiração do meu peito, se quisesse. Ela podia várias coisas, mas após um breve beijo, abriu a porta e saiu correndo.
Não posso acusá-la, alguém a esperava em casa. Eu também tinha quem esquentasse a cama antes de eu chegar. Mas é como se a minha mulher já fizesse parte daquele ser inanimado, como se o seu corpo tivesse se dissolvido no lençol e o sorriso, forçado e amarelo, tivesse se apoderado da estampa do edredom. Eu deitava e rolava por cima, batia punheta muitas vezes, e nada além de uma cama debaixo de um cobertor existiam. Apesar dessa sua subexistência, jamais poderia admitir que me falasse em ir embora. Ela deveria ficar e coexistir com Maria Eugênia e todas as outras antes e depois dela.
Começamos, depois do incidente do beijo, a nos ver frequentemente. Ficávamos dentro do carro conversando por horas, e eu lhe roubava uma ou outra carícia. Um dia, porém, não dava pra ficar mais só de gracinha. Sentia que eu iria entrar em combustão humana se não a comesse. Ela estava pior do que eu.
A paixão, se não tomar cuidado, nos mata. Eu a adverti, inúmeras vezes, depois da nossa primeira noite, mas a ordinária não quis me ouvir. Achou que, como eu havia conseguido o que queria, estava afastando-a de mim. Juro que ela estava enganada. Hoje vejo que reagiu estranhamente e entendo o porquê. Pela primeira vez na vida talvez experenciava a insegurança, vivenciou o sentimento pegar-lhe pelos cabelos e arrastar a sua cara no chão. Deve ter sido uma queda abrupta.
Chegamos a ter uma segunda noite, mas discutimos dias depois por uma razão besta. Ela alegou, após fazermos as pazes, que iria dar uma chance para o casamento e por isso seria mais prudente rompermos o contato. Fui um capacho obediente, Maria Eugênia.
Agora ela estava ali, semiadormecida. Vulnerável. Sempre dizia que dormir com alguém era mais íntimo do que transar. Nunca concordei, sempre achei tal assertiva ingênua demais. Mas ali, olhando pra ela se dar por vencida depois de entrar em vulcanismo, achei que éramos os únicos sobreviventes do mundo.
Quando regressamos ao nosso ponto de partida vi que iria se fechar novamente, então despejei:
Vamos jantar, pelo menos.
Ela segurou firmemente a chave na mão, depois a tirou do trinco. Desferiu-me um olhar de dentro para dentro, como numa época em que a tive em meus braços. Estava disposta a ceder, mas a negação encontrava-se intrínseca. Já sabia ler o seu corpo, então insisti. Bastou um toque no ombro.
No hotel tinha um bar, algumas árvores e um pergolado ao redor da piscina. Era só chamar o garçom e solicitar a comida, mas a sensação de que estar ali comigo era errado demais fez com que pedisse logo uma cerveja.
Está bem, vamos beber.
Mesmo que detestasse bebida, lembrei no meu íntimo o quanto isso ajudava a ela se soltar, usar-se de sua autenticidade indomável. Deixei, acompanhei. Estava aberto. Afinal, só iríamos para casa no dia seguinte e perderíamos o expediente da segunda. A segunda seria muito longa dentro daquele ônibus.
E de repente começou a me pedir conselhos sobre o seu casamento. Nada contra ele, mas no fundo tinha uma vontade de meter-lhe um murro, da mesma forma como ele faria se soubesse que andei comendo a mulher dele.
Sou horrível nesse quesito, essa coisa de dar de graça a alguém algo que ela já sabe é para desanimar qualquer um. No entanto, haviahavi verdade tão angustiante naqueles relatos que me senti apto a fazê-lo. Estávamos enclausurados no mesmo redemoinho e o máximo que podíamos fazer era tomar aquela cerveja juntos. Virei o copo.
Nunca mais viveremos o início da paixão, lamentou. Nunca mais viveremos aquele início em que tudo que o outro diz é engraçado, em que dormir só é confortante quando se está de conchinha com aquela pessoa, em que o seu simples toque é capaz de tirar-nos da depressão, estresse, ansiedade e nos transportar para a quinta dimensão. Em que. Nunca mais viveremos.
O meu estômago parecia revirar-se. Lembrei-me da minha mulher e do seu sorriso sendo engolido pelo buraco negro que havia em nossa cama.
Em compensação, continuou, eles estarão lá, nos dando a merda da segurança afetiva. Pra quê precisamos dela mesmo?
E aí a figura da minha mulher foi abduzida para todo o sempre que duraria algumas horas.
Você só está entediada. Por que não vai passear, se distrair com as suas amigas?
Amigaxxx. E riu. Gostava de imitar a minha chiadeira sem fim. Achava charmoso ou piegas, vai saber, mas se fazia isso é porque estava começando a se convalescer daquela dor, a mesma que eu sentia e ignorava.
De repente, colocou a sua mão sobre a minha. Quis saber se eu havia tido mais alguém depois dela. Se afirmasse positivamente ela iria fazer de conta que aquilo não a afetaria e ainda teria a cara de pau de dizer: ninguém é tão mulher como eu. Também sabia que se negasse ela ainda falaria isso, acreditando ser esse o motivo de continuar na mesma. Então perguntei:
O que você acha?
Acho que você fez a gente perder o ônibus de propósito para me prender aqui contigo.
Por Deus, Maria Eugênia. Eu saí dois minutos depois que você, o táxi atrasou e o ônibus se adiantou.
Quer dizer que você não queria passar mais uma noite comigo?
Ajeitei-me na cadeira, dei uma tossida um tanto forçada, desejava prolongar aquele silêncio. Maria Eugênia destituiu-se de sua imagem revoltosa de uma hora atrás e agora personificava uma deusa em transe, com poderes de enfiar-se na minha corrente sanguínea, latejar-me, arrancar a paz, picotar a memória. A única coisa que eu gostaria naquele momento era tirar o copo da sua mão e dar vazão aquela sandice antes que ela nos destruísse.
Você quer um cigarro? Senti o cheiro ali próximo de nós, ela concordou. P
Precisávamos da cerveja, do fumo, da carne. Tudo o que significasse urgência era bem-vindo ao nosso mundinho.
E com as mãos trêmulas levava-o a boca, queria expurgar o desejo, a maldição, a verdade. Lembrava do marido e da culpa que se enunciava, feroz, alastrando-se do coração até os olhos, e ainda assim era incapaz de retornar para aquela áurea de enfrentamento. Se resistisse, seria uma heroína. Mas ela se orgulhava de ser machadiana.
Aos poucos, vi-a se transformar num corpo, uma espécie de levitação cujo objetivo único consistia em me inflamar. Era como se soubesse exatamente o que fazer, o que falar, de que maneira pronunciar. Ela havia chegado, a mulher a quem eu temia e amava. A mulher dentro de todas as mulheres. A incitação e o desejo do prazer pelo prazer se faziam presentes toda vez que me remetia um novo olhar. Sem rastro de culpa, o marido havia enfim desaparecido, bem como a sua outra e real vida. Juro que não fiz nada além de acompanha-la, entrar no ritmo, acertar na dança. Eu era cobaia, me permitia sê-lo. Fui conduzido.
Quando dei por mim já estávamos arrancando a roupa do outro, sem intervalo nem para respirar. Lá fora havia o fim do mundo e tudo o que importava era o quanto eu conseguia sugar a sua alma pela boca, pelos dentes, pelas mãos. Tinha medo de que se eu a soltasse por um segundo ela fosse arrebatada num só golpe, na minha frente, e nada pudesse fazer para impedir, então eu amparava em infinitos abraços, queria pintar seu corpo com a sua língua, sentir o seu gosto e deixar o meu, e ela ali, levianamente tomada.
Abri as suas pernas e busquei sentir o seu cheiro úmido, inspirei-o, ansiava que o ato nos curasse daquela doideira, então passei a língua em seu clitóris calmamente, ela urrou, gozaria a qualquer instante porque o corpo todo trabalhava com esse intuito, mas eu continuei, eu queria ver, sentir, presenciar. Provocar.
E depois de ter se contorcido inteira, de suas pernas terem volteado o meu pescoço e praticamente me enforcado durante os espamos, o seu temperamento febril passou em questão de segundos para um choro brusco, quase convulsivo, tão forte que pensei nunca ver o seu fim. Uma linha tênue além de tesão nos ligava, e ela era injusta e egoísta, embora estupidamente real. Tentei abraça-la, mas o seu corpo compactuava com a dor, queria fazer-se só. Via a mais clara confissão dos nossos limites, dos mesmos que ultrapassávamos por simples querer. Eu a perdi. Não era mais a Maria Eugênia, a força, o rompante, o monumento, mas sim o projeto, o embrião, o anti-ser em seu estado natural de atordoamento quando desencontra a mão humana. Compreendi o quanto fui intruso de sua intimidade e senti a terrível necessidade de devolvê-la ao seu conforto. Aquilo que cultivávamos estava longe de ser amor ou paixão. Foi algo ainda mais denso e obscuro, e se buscávamos a pele um do outro é porque uma ânsia muito estridente gritava dentro do tórax e nos atraía fatalmente.
Queria que aquela cena não tivesse acontecido, era para estarmos nus conversando sobre miudezas, até mesmo recriminando pessoas não muito diferente de nós. Mas ela pulou essa parte e foi se vestir, de repente voltou a ser a mulher decidida e concentrada de sempre, um ser vivo com aparência inviolável em seu ar de quem pode tudo, inclusive chifrar o marido e sair como se nada tivesse acontecido. Senti um ódio desconfortável, repeli, certamente o sentimento destoava daquela aparição que se erguia sobre mim a fechar a braguilha. Suspirei, eu teria que ser muito forte.
Você sabe que sempre terei um carinho muito grande por você, não sabe? Disse-me, com a mão em meu rosto de forma enternecida.
Beijei-a com o mesmo afeto, talvez já sofrendo de saudade antecipada. Era recíproco.
Após se pentear e recolher o restante das suas coisas conversamos sobre amenidades. Tocou no assunto do regresso, deu até um sorriso levemente malicioso, e se despediu, confirmando o nosso reencontro no dia seguinte. Eu sabia, Maria Eugência não sabia fazer-se em palavra, era reincidente no erro e no desejo, uma daquelas mulheres amaldiçoadas pela própria carne, completamente desinteressada em vencer. Despencava cheia de vontade, só estava feliz quando se encontrava no chão, imunda e liberta em seu prazer que era puramente vaidade. Eu a conhecia tão bem que podia jurar que no ônibus me pagaria um boquete.
Dormi entusiasmado, deixando de lado o episódio do choro e o substituindo pelo seu tom de convite, em seu cheiro de puta por evitar se lavar depois do sexo só para permanecer por mais tempo daquele jeito, em sua entrelinha subversiva.
No dia seguinte acordei bem cedo e ao finalizar as atividades matinais interfonei para o seu quarto. Ninguém atendeu. Ora essa, liguei de novo, ainda descrente da possibilidade de ter sido deixado pra trás. Liguei de novo e de novo. Consultei o celular, nenhuma mensagem, ligação. Fui bater na sua porta, incomodei os outros hóspedes. Por último, dirigi-me à portaria e antes de fazer o checkout perguntei por ela.
Saiu uma hora atrás.
… Ela não deixou nenhum bilhete, aviso, nada?
Não senhor.
Virei-me rangendo os dentes, sem que o funcionário percebesse. Estava acostumado a explodir pra dentro. Além disso, não quis expor a minha situação de amante abandonado. Aquilo, como o que vivemos, carregava a essência do incompartilhável.
Vanessa Teodoro Trajano
Modelo: @mthalialima
Fotógrafo: @iveltopaiva
Como isso nunca aconteceu, eu escrevo.
Cada um saiu do seu quarto na hora marcada, pegamos o mesmo táxi, subimos juntos a rampa da rodoviária. No entanto, por alguma razão desconhecida, o ônibus saiu minutos antes do previsto. De repente vi-a me olhar como se eu tivesse culpa, como se voltar para casa naquele exato instante fosse uma questão de vida ou morte. Em contrapartida ao seu ataque de fúria, simplesmente me ausentei de responsabilidade. Maria Eugênia, insatisfeita com a minha serenidade, fez que ia me xingar, mas se calou. Solucionar aquele problema era mais importante do que dar vazão a sua ânsia, então saiu em busca do guichê da empresa onde havíamos comprado as passagens, estabanada, eufórica.
Só tem ônibus amanhã de manhã, disse a moça, alheia ao nosso ódio em ter que permanecer ali.
Faltar ao trabalho está fora dos nossos planos.
Lamento, sairá às sete.
E agora? Tinha uma raiva canina nos lábios.
Ela arrastou a mala atrás de si, embrenhou-se no meio daquele monte de carros e deu com a mão. Corri para alcançá-la, não era do seu feitio esperar, logo eu que ficava feito bobo à espera de decisões furtivas. Peguei o celular, precisava justificar a uma pessoa querida que o meu retorno iria demorar, enquanto ela me olhava de esguelha. Sua respiração foi ficando mais branda e até deixou o pescoço cair no banco, devia estar no cansaço de tudo. Apesar de estar num estado de leoa arfante, ela ainda era uma mulher por quem me interessava. Ainda era a mulher que eu gostaria de chamar de minha.
Lembrei-me de quando a conheci, uma aluna indomável, dessas que evitam assumir os próprios erros. Repetia-os só de sacanagem, motivo pela qual fazia toda a turma odiá-la, falar ao seu respeito com propriedade, excluí-la de atividades. Por conta disso, meio que reparei nela só bem depois do imediatismo da sua presença. Não era a mais bonita, mas no dia em que tirou os óculos para que eu pudesse limpá-los uma descarga elétrica passou pelo meu corpo; limpei, dei meia volta, cocei-me inteiro, voltei. Ela os colocou, sem entender. Talvez soubesse, estamos falando de Maria Eugênia.
Agora estava ali, semiadormecida. Há alguns meses deixei de ser o seu instrutor e nos tornamos colegas de ofício. Confesso que ao receber a notícia reconheci naquilo uma oportunidade de me aproximar. Houve um churrasco em que bebeu demais, então me ofereci para levá-la em casa. No caminho conversamos sobre uma porção de semelhanças entre nós das quais nem podíamos imaginar. Por exemplo, Raul. A música dele tocava cotidianamente em nossas cabeças – mais na dela, que fazia da maça a sua filosofia de relacionamento. Era uma nova Maria Eugênia, não a implicante e insuportável da qual haviam falado. Era uma nova e ao mesmo tempo a de sempre. Bem pertinho de mim, ela podia sentir o meu suor, se quisesse. Bem perto, muitíssimo perto, ela podia escutar a respiração do meu peito, se quisesse. Ela podia várias coisas, mas após um breve beijo, abriu a porta e saiu correndo.
Não posso acusá-la, alguém a esperava em casa. Eu também tinha quem esquentasse a cama antes de eu chegar. Mas é como se a minha mulher já fizesse parte daquele ser inanimado, como se o seu corpo tivesse se dissolvido no lençol e o sorriso, forçado e amarelo, tivesse se apoderado da estampa do edredom. Eu deitava e rolava por cima, batia punheta muitas vezes, e nada além de uma cama debaixo de um cobertor existiam. Apesar dessa sua subexistência, jamais poderia admitir que me falasse em ir embora. Ela deveria ficar e coexistir com Maria Eugênia e todas as outras antes e depois dela.
Começamos, depois do incidente do beijo, a nos ver frequentemente. Ficávamos dentro do carro conversando por horas, e eu lhe roubava uma ou outra carícia. Um dia, porém, não dava pra ficar mais só de gracinha. Sentia que eu iria entrar em combustão humana se não a comesse. Ela estava pior do que eu.
A paixão, se não tomar cuidado, nos mata. Eu a adverti, inúmeras vezes, depois da nossa primeira noite, mas a ordinária não quis me ouvir. Achou que, como eu havia conseguido o que queria, estava afastando-a de mim. Juro que ela estava enganada. Hoje vejo que reagiu estranhamente e entendo o porquê. Pela primeira vez na vida talvez experenciava a insegurança, vivenciou o sentimento pegar-lhe pelos cabelos e arrastar a sua cara no chão. Deve ter sido uma queda abrupta.
Chegamos a ter uma segunda noite, mas discutimos dias depois por uma razão besta. Ela alegou, após fazermos as pazes, que iria dar uma chance para o casamento e por isso seria mais prudente rompermos o contato. Fui um capacho obediente, Maria Eugênia.
Agora ela estava ali, semiadormecida. Vulnerável. Sempre dizia que dormir com alguém era mais íntimo do que transar. Nunca concordei, sempre achei tal assertiva ingênua demais. Mas ali, olhando pra ela se dar por vencida depois de entrar em vulcanismo, achei que éramos os únicos sobreviventes do mundo.
Quando regressamos ao nosso ponto de partida vi que iria se fechar novamente, então despejei:
Vamos jantar, pelo menos.
Ela segurou firmemente a chave na mão, depois a tirou do trinco. Desferiu-me um olhar de dentro para dentro, como numa época em que a tive em meus braços. Estava disposta a ceder, mas a negação encontrava-se intrínseca. Já sabia ler o seu corpo, então insisti. Bastou um toque no ombro.
No hotel tinha um bar, algumas árvores e um pergolado ao redor da piscina. Era só chamar o garçom e solicitar a comida, mas a sensação de que estar ali comigo era errado demais fez com que pedisse logo uma cerveja.
Está bem, vamos beber.
Mesmo que detestasse bebida, lembrei no meu íntimo o quanto isso ajudava a ela se soltar, usar-se de sua autenticidade indomável. Deixei, acompanhei. Estava aberto. Afinal, só iríamos para casa no dia seguinte e perderíamos o expediente da segunda. A segunda seria muito longa dentro daquele ônibus.
E de repente começou a me pedir conselhos sobre o seu casamento. Nada contra ele, mas no fundo tinha uma vontade de meter-lhe um murro, da mesma forma como ele faria se soubesse que andei comendo a mulher dele.
Sou horrível nesse quesito, essa coisa de dar de graça a alguém algo que ela já sabe é para desanimar qualquer um. No entanto, haviahavi verdade tão angustiante naqueles relatos que me senti apto a fazê-lo. Estávamos enclausurados no mesmo redemoinho e o máximo que podíamos fazer era tomar aquela cerveja juntos. Virei o copo.
Nunca mais viveremos o início da paixão, lamentou. Nunca mais viveremos aquele início em que tudo que o outro diz é engraçado, em que dormir só é confortante quando se está de conchinha com aquela pessoa, em que o seu simples toque é capaz de tirar-nos da depressão, estresse, ansiedade e nos transportar para a quinta dimensão. Em que. Nunca mais viveremos.
O meu estômago parecia revirar-se. Lembrei-me da minha mulher e do seu sorriso sendo engolido pelo buraco negro que havia em nossa cama.
Em compensação, continuou, eles estarão lá, nos dando a merda da segurança afetiva. Pra quê precisamos dela mesmo?
E aí a figura da minha mulher foi abduzida para todo o sempre que duraria algumas horas.
Você só está entediada. Por que não vai passear, se distrair com as suas amigas?
Amigaxxx. E riu. Gostava de imitar a minha chiadeira sem fim. Achava charmoso ou piegas, vai saber, mas se fazia isso é porque estava começando a se convalescer daquela dor, a mesma que eu sentia e ignorava.
De repente, colocou a sua mão sobre a minha. Quis saber se eu havia tido mais alguém depois dela. Se afirmasse positivamente ela iria fazer de conta que aquilo não a afetaria e ainda teria a cara de pau de dizer: ninguém é tão mulher como eu. Também sabia que se negasse ela ainda falaria isso, acreditando ser esse o motivo de continuar na mesma. Então perguntei:
O que você acha?
Acho que você fez a gente perder o ônibus de propósito para me prender aqui contigo.
Por Deus, Maria Eugênia. Eu saí dois minutos depois que você, o táxi atrasou e o ônibus se adiantou.
Quer dizer que você não queria passar mais uma noite comigo?
Ajeitei-me na cadeira, dei uma tossida um tanto forçada, desejava prolongar aquele silêncio. Maria Eugênia destituiu-se de sua imagem revoltosa de uma hora atrás e agora personificava uma deusa em transe, com poderes de enfiar-se na minha corrente sanguínea, latejar-me, arrancar a paz, picotar a memória. A única coisa que eu gostaria naquele momento era tirar o copo da sua mão e dar vazão aquela sandice antes que ela nos destruísse.
Você quer um cigarro? Senti o cheiro ali próximo de nós, ela concordou. P
Precisávamos da cerveja, do fumo, da carne. Tudo o que significasse urgência era bem-vindo ao nosso mundinho.
E com as mãos trêmulas levava-o a boca, queria expurgar o desejo, a maldição, a verdade. Lembrava do marido e da culpa que se enunciava, feroz, alastrando-se do coração até os olhos, e ainda assim era incapaz de retornar para aquela áurea de enfrentamento. Se resistisse, seria uma heroína. Mas ela se orgulhava de ser machadiana.
Aos poucos, vi-a se transformar num corpo, uma espécie de levitação cujo objetivo único consistia em me inflamar. Era como se soubesse exatamente o que fazer, o que falar, de que maneira pronunciar. Ela havia chegado, a mulher a quem eu temia e amava. A mulher dentro de todas as mulheres. A incitação e o desejo do prazer pelo prazer se faziam presentes toda vez que me remetia um novo olhar. Sem rastro de culpa, o marido havia enfim desaparecido, bem como a sua outra e real vida. Juro que não fiz nada além de acompanha-la, entrar no ritmo, acertar na dança. Eu era cobaia, me permitia sê-lo. Fui conduzido.
Quando dei por mim já estávamos arrancando a roupa do outro, sem intervalo nem para respirar. Lá fora havia o fim do mundo e tudo o que importava era o quanto eu conseguia sugar a sua alma pela boca, pelos dentes, pelas mãos. Tinha medo de que se eu a soltasse por um segundo ela fosse arrebatada num só golpe, na minha frente, e nada pudesse fazer para impedir, então eu amparava em infinitos abraços, queria pintar seu corpo com a sua língua, sentir o seu gosto e deixar o meu, e ela ali, levianamente tomada.
Abri as suas pernas e busquei sentir o seu cheiro úmido, inspirei-o, ansiava que o ato nos curasse daquela doideira, então passei a língua em seu clitóris calmamente, ela urrou, gozaria a qualquer instante porque o corpo todo trabalhava com esse intuito, mas eu continuei, eu queria ver, sentir, presenciar. Provocar.
E depois de ter se contorcido inteira, de suas pernas terem volteado o meu pescoço e praticamente me enforcado durante os espamos, o seu temperamento febril passou em questão de segundos para um choro brusco, quase convulsivo, tão forte que pensei nunca ver o seu fim. Uma linha tênue além de tesão nos ligava, e ela era injusta e egoísta, embora estupidamente real. Tentei abraça-la, mas o seu corpo compactuava com a dor, queria fazer-se só. Via a mais clara confissão dos nossos limites, dos mesmos que ultrapassávamos por simples querer. Eu a perdi. Não era mais a Maria Eugênia, a força, o rompante, o monumento, mas sim o projeto, o embrião, o anti-ser em seu estado natural de atordoamento quando desencontra a mão humana. Compreendi o quanto fui intruso de sua intimidade e senti a terrível necessidade de devolvê-la ao seu conforto. Aquilo que cultivávamos estava longe de ser amor ou paixão. Foi algo ainda mais denso e obscuro, e se buscávamos a pele um do outro é porque uma ânsia muito estridente gritava dentro do tórax e nos atraía fatalmente.
Queria que aquela cena não tivesse acontecido, era para estarmos nus conversando sobre miudezas, até mesmo recriminando pessoas não muito diferente de nós. Mas ela pulou essa parte e foi se vestir, de repente voltou a ser a mulher decidida e concentrada de sempre, um ser vivo com aparência inviolável em seu ar de quem pode tudo, inclusive chifrar o marido e sair como se nada tivesse acontecido. Senti um ódio desconfortável, repeli, certamente o sentimento destoava daquela aparição que se erguia sobre mim a fechar a braguilha. Suspirei, eu teria que ser muito forte.
Você sabe que sempre terei um carinho muito grande por você, não sabe? Disse-me, com a mão em meu rosto de forma enternecida.
Beijei-a com o mesmo afeto, talvez já sofrendo de saudade antecipada. Era recíproco.
Após se pentear e recolher o restante das suas coisas conversamos sobre amenidades. Tocou no assunto do regresso, deu até um sorriso levemente malicioso, e se despediu, confirmando o nosso reencontro no dia seguinte. Eu sabia, Maria Eugência não sabia fazer-se em palavra, era reincidente no erro e no desejo, uma daquelas mulheres amaldiçoadas pela própria carne, completamente desinteressada em vencer. Despencava cheia de vontade, só estava feliz quando se encontrava no chão, imunda e liberta em seu prazer que era puramente vaidade. Eu a conhecia tão bem que podia jurar que no ônibus me pagaria um boquete.
Dormi entusiasmado, deixando de lado o episódio do choro e o substituindo pelo seu tom de convite, em seu cheiro de puta por evitar se lavar depois do sexo só para permanecer por mais tempo daquele jeito, em sua entrelinha subversiva.
No dia seguinte acordei bem cedo e ao finalizar as atividades matinais interfonei para o seu quarto. Ninguém atendeu. Ora essa, liguei de novo, ainda descrente da possibilidade de ter sido deixado pra trás. Liguei de novo e de novo. Consultei o celular, nenhuma mensagem, ligação. Fui bater na sua porta, incomodei os outros hóspedes. Por último, dirigi-me à portaria e antes de fazer o checkout perguntei por ela.
Saiu uma hora atrás.
… Ela não deixou nenhum bilhete, aviso, nada?
Não senhor.
Virei-me rangendo os dentes, sem que o funcionário percebesse. Estava acostumado a explodir pra dentro. Além disso, não quis expor a minha situação de amante abandonado. Aquilo, como o que vivemos, carregava a essência do incompartilhável.
Vanessa Teodoro Trajano



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