Esse conto está no meu novo livro 3 NOITES COM MARIA EUGÊNIA e gostaria de compartilhar com vocês:
CRIME

Ele era baterista de uma banda.
Ficava me olhando, me olhando, me olhando. Como se eu fosse capaz de produzir uma espécie de música na cabeça dele.
E eu, só de sacanagem, olhava, olhava e olhava.
Um dia ele veio. Posso? Sem timidez. Senão teria dito que iria ao
banheiro e sentaria noutra mesa. Gostei. Mas não o bastante para um
beijo. Isso não, gente. Deixava que tocasse a minha mão, me dedicasse
canções, mandasse mensagens no meio da noite. Nada mais. E percebia que,
à medida em que eu limitava a sua presença, a vontade de forçá-la só
aumentava.
Isso vai acabar em merda, dizia uma amiga.
Dá logo pra ele, pedia a outra.
De jeito nenhum. Se era buceta que ele queria, não ia ter. Podia
esfregar na cara, mas sem deixar comer. Comparecia aos shows e não dava
mole pra ninguém, só para fazê-lo acreditar que daquela vez me teria.
Não me pergunte com quem aprendi esse tipo de coisa. É instintivo.
Talvez seja a minha vingança pessoal contra o sexo oposto. Os bons terão
que pagar pelos maus ou algo assim. Já me chamaram até de justiceira –
antes de conhecerem esse relato, é claro.
Passaram alguns meses e fui sentindo certa desistência. Permiti. Afinal, pássaro na gaiola é muito desenxabido.
Numa dessas noites fui ao show e ele estava com uma moça. Disseram que
se tratava uma amiga, então cheguei acertando os lábios nos dele, toda
contente.
Apesar de ter ficado surpreso, não me afugentou. Muito
pelo contrário, estava à vontade com o gesto, abrindo os braços como se
quisesse ir além, embora aparentemente receoso. A menina fez cara de
poucos amigos, parecia sapatear no mesmo lugar. Fiz que não vi e fui
bastante simpática. Porém ela estava indisposta a corresponder meu senso
de educação e saiu deixando um rastro de fumaça.
Vá atrás dela.
De longo pude ver: um tapa, meus senhores. O legítimo e novelesco. Dez
pontos para mim. Acendi um cigarro e me sentei para melhor assistir.
Sabe quando se ganha um troféu de honra ao mérito? A cada gesticulação
enfurecida dela ao empurrá-lo era assim que me sentia: laureada. Fiz
outra mulher sofrer à custa de vaidade. Será que vou pro inferno por
causa disso? Prefiro evitar pensar nesse assunto.
Depois dessa tive
que beijá-lo, de verdade, pela primeira vez. E novamente acertei: logo
em seguida comuniquei que a minha mãe havia ligado e que eu teria que ir
para casa correndo. Preocupou-se, ofereceu me levar. Não, que é isso.
Você vai já tocar. Até logo.
Depois o evitei o máximo que pude. Tantas e tantas vezes que uma hora ele caiu na real.
Você é um monstro. Vai acabar sozinha.
Ui, que meda.
Dentre as várias lamentações que me lançou, disse que a tal moça em
questão realmente gostava dele e agora não queria vê-lo nem pintado de
ouro. Eu no lugar dela também não. Aliás, nem quero.
Por que você faz isso?
Todos querem saber, que merda. Não há uma razão específica, querido.
Sou a pomba gira, deve ser. Ou apenas uma mulher carente de escrúpulos,
porque foi assim que ele me nomeou. Tadinho. Até ferido me amava.
Hoje é casado e tem dois filhos. Quando a sua mulher passa por mim,
cospe. Nem preciso dizer que essa é a melhor reverência que alguém
poderia me dar.
Vanessa Teodoro Trajano
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