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Clímax
Clímax
Eu sabia que dessa vez não tinha pra onde correr, ou mentiras que inventar. Mesmo assim
fui. Ah, vamos lá, não devia ser tão ruim assim. Fora a parte que àquela altura minhas roupas já
deviam ter sido jogadas pela janela ou virado cinza estava tudo sob controle. Tirando tal probabilidade fiquei até aliviado. Um pouco mais e bum, voariam pedaços meus pra tudo quanto é lado.
Literalmente. Pressão 17 por 16. O médico falou que o meu estilo de vida pode matar. Pago por
amar demais. Duas TPMs, dois modos de estender a toalha, uma vegana e a outra avessa a esses
papinhos fitness. Eu deveria era ganhar um prêmio. Ok, falando sério, já estava na hora de tudo ter dar
errado.
E sim, também sabia como encontraria Eva: uma semi-desfalecida, com os olhos no fundo
da face, num ar de quem teve seu futuro levado embora. Deu pena e outra coisa que ainda não sei
dizer o que é.
- Nós havíamos prometido - disse, depois e uma daquelas pausas dramáticas que nunca
sabemos se é proposital ou efeito da própria garganta - que nunca iríamos nos relacionar com
terceiros.
Estava doido quando prometi tal coisa? Como se jura algo assim para alguém que com toda certeza tomará como verdade absoluta? Culpado sou eu, ao saber que não era possível e mesmo assim tê-lo feito.
Ela poderia saber, mas cuidei de envenenar-lhe com esse meu ar de bom moço.
- No entanto - continuou -, você não só se relacionou como já duram três anos. Três anos,
Augusto, três! E ela é casada. Como vocês conseguiram?
De fato. Como nós conseguimos? Víamo-nos pouco, talvez, a julgar pelo tempo. E umas
duas viagens que não foram a trabalho.
- Eva, não foi bem assim. Nós...
- Você chegou a alugar um apartamento só para se encontrar com ela! - e desabou. Confesso
que isso é sempre o mais difícil. Entretanto, se a vejo chorar constato que ainda me resta alguma
humanidade, bem mais do que quando estou com Fabrícia. Não sei se já a vi chorar dessa forma por
minha causa ou qualquer outra. Talvez nunca. Com a Fabrícia há uma espécie de eletricidade. Não
podemos nos ver que iremos nos tocar. Se nos tocar acabaremos em sexo. E depois do sexo é sexo
de novo. E de novo. Mas aquele choro, o rosto da minha mulher empestado por uma mágoa cujo
mérito era exclusivamente meu, fez-me lembrar que havia outro homem nesse corpo, alguém que ainda
estava apto a sentir algo próximo de culpa.
- Eu confesso, Eva.
- Claro que confessa. Por que nós mulheres persistimos em acreditar que chegaremos à
velhice sem precisar passar por esse tipo de humilhação?
Eva andou pelo quarto, pegou o celular. Vi o rosto se transportar da tristeza para o
indefinível.
- Ela é bonita, né? Corrijo: linda. Quem não se encantaria por uma mulher dessas? Eu
poderia dizer que é ridícula, mesmo não sendo, como fazem muitas em situações semelhantes. Mas
não posso. Infelizmente não posso! - e pranteou de novo. Dessa vez era fácil identificar: sou um
escroto.
Fui à cozinha buscar água e presenciei a louça inundada, restos de comida pela mesa - tudo
muito incomum para a nossa casa. Fui me impregnando de uma sensação degradante que chegava a
dar tonturas. De repente odiei Fabrícia, desejei que ela nem tivesse nascido. Como pôde ter feito tão
mal à Eva?
Voltei, entreguei-lhe o copo. Ela olhou pro fundo como se nele existisse um rio na qual
pudesse evadir-se. Minha vontade era de sair correndo, encher a cara sozinho por aí. Isso
tampouco adiantaria. Quando voltasse ela ainda estaria no mesmíssimo lugar, noutro estágio da dor
em que só é possível estar dormente.
- Ela não tem culpa de nada - surpreendi-me depois de minutos que pareciam horas, de uma
hora que levou um milênio - Você sim, só você. Vocês deviam estar bastante entediados pra fazer
isso conosco.
Como explicar que sim, talvez fosse o tédio o responsável, a rotina, a completa exatidão dos
dias, e tudo aquilo que nos destinou ao irremediável. A paz cansa, Eva. Mas te olhando assim, dessa
maneira tão desgraçada, me deu até vergonha de ter permitido ela se transformar nessa tua lágrima
que por ora foi esbarrada por orgulho.
- O marido dela sabe?
- Não. Você vai contar?
- Jamais. Se souber, não por mim. Prefiro morrer a contar pra alguém.
- Não fala assim...
- Quem vê diz que se importa.
- Eu me importo - havia tanta verdade entre nós que ela deixou sua mão ser aquecida pela
minha. Nossos olhos finalmente se reencontraram, do mesmo modo que já fizemos um dia, há
muitos anos, e não havia nada daquilo que hoje há no meio do caminho. Eu me negava a perdê-la.
- Eva, eu realmente fiquei motivado a viver novas experiências e errei porque fui vivendo.
Quero que saiba que sempre pensei em parar, e...
- Você a ama.
- Não a amo, eu amo...
- Viu. Não consegue nem dizer que me ama. Estamos falidos, nem o amor nos quer. Sofro à toa, sou uma tonta.
O que eu poderia fazer para me convencer do equívoco?
Ela se ergueu. Tinha um ar de mistério e altivez, como se o fracasso nunca fosse capaz de
alcançá-la. Gosto desse lado de Eva, me faz achar que casei com a mulher certa. Se fosse a Fabrícia
teria quebrado a casa toda. O problema é que esse teor nervosinho me dá tesão. Posso acalmá-la e
sei exatamente como. Porém com minha esposa perdi a mão e só agora percebo que foi bem antes
de ter uma amante. Obrigado por nascer, Fab.
- Perguntei do marido porque fica difícil saber pra onde vou te mandar. Vocês dois não
podem ficar juntos agora por conta dele, seria uma afronta.
- Quem disse que eu quero ficar com ela?
- E três anos foram pra quê? Para nos fazer descobrir e depois se tornarem meros
conhecidos? Que pouca vergonha é essa? Você vai embora.
- Na-na-na-na-na-na-na-na-não! De jeito nenhum.
Perdi o bom senso. Agarrei-a. Chocalhei-a. Não quis acreditar que estava sendo enxotado.
Justo por ela.
- Podemos voltar a ser o que éramos antes, sem Fabrícia. Foi um erro grave, mas ele não se
repetirá, e... - aquela contração, a terrível contração anterior ao choro foi tão longa que a desprendi.
Logo em seguida fui infortunado pela sua imagem que era de todo decadência. Apesar do medo,
coloquei-a vagarosamente nos meus braços. Não importava se ali pouco antes Fabrícia dormira. Já
não a odiava. Nem a mim. Não digo que começava a compreender, no entanto lá no fundo, bem no
fundo, ela intuía que o nosso juramento havia sido surreal. Nenhum romance deveria acabar em contrato.
Depois de tanto soluçar se afastou como quem recorda de um mal iminente e reforçou,
ferrenha:
- Você vai embora - saiu.
- Eu posso até ir. Mas eu volto.
Eva no fundo também sabia disso.
Vanessa Teodoro Trajano
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